Phillipp Melanchthon – o mestre da Alemanha
Na primeira palestra – “Lutero e a Catequese” – um ponto que eu tentei enfatizar é que por alguma razão, deliberada ou não, o que foi escolhido neste breve catecismo foi o método pergunta e resposta. E, acoplado a ele, veio uma visão pedagógica, um entendimento das ferramentas de aquisição do saber. Então o método privilegiado na catequese de Lutero, também entre os reformados da Suíça e depois da Inglaterra e Escócia, foi o trivium: gramática, lógica e retórica.
Lutero laçou as bases e o seu grande colega e amigo, Phillipp Melanchthon levou a visão avante.
O tema desta palestra é “Phillipp Melanchthon – o mestre da Alemanha”. Foi assim que ele foi chamado e é reconhecido até hoje na Alemanha, na medida em que a fé de Lutero foi eclipsada por causa da teologia liberal e das forças de secularização, a herança de Melanchthon permaneceu. E para mal ou para bem, algumas vezes na Alemanha hoje, Melanchthon é mais lembrado do que Lutero por causa do seu esforço educacional. Vamos trabalhar alguns pontos hoje.
Como Lutero é mais conhecido do que Melanchthon eu vou nesta palestra dar algumas pistas gerais da sua carreira e destacar alguns elementos pessoais. Contudo eu quero enfatizar mais a visão educacional dele, ambiciosa, e como foi uma visão de grande impacto na Alemanha e noutros países no centro da europa e mesmo além.
Alguns pontos importantes sobre a infância e adolescência de Melanchthon.
Ele nasceu numa cidade chamada Bretten, na Alemanha a 14 de fevereiro de 1497. Desde cedo cresceu num ambiente cercado por devoção aos clássicos e ao saber. Um dos seus parentes era um homem chamado Reuchlin que era o maior hebraísta da época, que o estimulou desde cedo a perseguir com diligência o amor pelas línguas clássicas, e já na adolescência ele ganhou uma gramática grega e uma Bíblia. Estes foram os dois livros textos da sua vida, os livros que foram a base de toda a sua vida e carreira.
Em 1507 começou a estudar latim na escola em Pforzheim e acabou por se tornar bacharel em letras na Universidade de Heidelberg, que se tornou a sua alma mater. Com 17 anos, em 1514 torna-se mestre em artes liberais na Universidade de Tübingen. Conta-se, que ele era tão interessado nos saberes, que não só assistia às aulas de letras, mas também assistia às palestras de teólogos, médicos e juízes pois queria ter uma visão abrangente e quanto mais ele pudesse saber ele se aplicava a isso.
Em 1518 é chamado de catedrático de língua e literatura grega na Universidade de Wittenberg, e precisamos de destacar que Wittenberg até esta época era praticamente desconhecida no contexto do sacro império romano-germânico. À semelhança de Agostinho, no Norte de África, que pastoreava Hipona Régia, Wittenberg era virtualmente desconhecida. É bom termos isto em mente, porque nem sempre Deus vai usar aqueles que estão em grandes capitais, grandes centros, em países centrais, mas Deus vai se servir, muitas vezes de lugares que as pessoas não dão importância nenhuma. Aliás, vou poupar os vossos ouvidos, mas Lutero descrevia Wittenberg com um palavrão muito grosseiro, dizendo que era a pior parte da anatomia humana. Era a forma de descrever Wittenberg no seu livro. Um lugar frio, longe dos lugares importantes da europa, mas foi o lugar onde Deus começou a reforma e um lugar em que a pequena Universidade que começou ali ganhou uma fama imensa, até hoje.
Com 17/18 anos, Phillipp Melanchthon é convidado a se tornar professor de língua e literatura grega na universidade de Wittenberg. Lutero já era razoavelmente bem conhecido, já era rotulado como um contestador, mas ainda não tinha sido excomungado da igreja, não era o tempo de excomunhão. Segundo se conta ele tinha há pouco tempo afixado as 95 teses na porta da igreja do castelo, a principal igreja da cidade.
Imaginem aquele rapaz, Melanchthon, chamado jocosamente de pequeno grego, com 17/18 anos, sendo apresentado a Lutero – bem mais experiente, mais velho, mais calejado, já doutor em Bíblia – como o novo professor de língua e literatura grega. Têm que entender que teólogos sabem ter sentido de humor, então Lutero e os seus colegas, num lance de humor e para testar os limites daquele rapaz, convidaram-no a fazer exposições em I Timóteo, II Timóteo e Tito que, pode não parecer, mas são livros difíceis das sagradas escrituras. Há bastantes temas complicados. O jovem de 18 anos começa a expor estes temas para a universidade e as pessoas ficam espantadas com a perícia daquele jovem de 18 anos. Aí Lutero vai dizer: “Imediatamente ficámos desenganados das ideias que havíamos formado dele pelo seu exterior. Elogiamos e admiramos as suas palavras e damos graças ao príncipe e a vós pelo serviço que nos haveis feito. Não peço outro mestre de grego.”
É bem interessante isto e a partir daí Lutero e Melanchthon tornam-se amigos literalmente inseparáveis
Em 1519 Melanchthon matricula-se na faculdade de teologia e Lutero faz o caminho inverso: matricula-se na universidade de grego para estudar com Melanchthon. Ambos foram colegas, parceiros e amigos durante quase 30 anos. A amizade era tão intensa que era difícil separar o que ambos pensavam. No final da vida Melanchthon vai colocar-se em algumas confusões teológicas; vai suavizar alguns pontos do reformador Lutero e isso vai levar a debates muito amargos no final da vida de Melanchthon. Mas, no começo da carreira, eles eram “unha e carne”, não se conseguiam separar, eram grandes amigos.
Um ponto interessante: Lutero tinha uma personalidade extrovertida e tem frases pitorescas. Por exemplo: ele tinha que atravessar um rio voltando de Eisleben e disse que o “maldito anabaptista quase que o engoliu!” coisas assim do género. Disse que a sua esposa era a maior mestre cervejeira de toda Wittenberg. Era expansivo, abraçava e amava a vida em todos os aspetos. Era virulento e de boca suja, teve alguns episódios muito pitorescos, enquanto que Melanchthon, por outro lado, era manso, afável, prudente, dado ao diálogo. Mas nem sempre era assim. Há uma história que ilustra um pouco quem era Melanchthon, que mostra uma inversão engraçada na personalidade de ambos. Melanchthon e um doutor, que o nome não é citado, foram convidados para uma refeição na casa de Lutero e naquela refeição começam a conversar e esse doutor começa a demonstrar algum desprezo pela matemática e Melanchthon vai rebater dizendo que a matemática é importante para, por exemplo, distinguir no calendário, dias, meses e anos. O doutor diz: “Mas mestre Phillipp! Os colonos na minha paróquia não precisam de calendário, eles sabem muito bem quando é verão ou inverno.” Aí Melanchthon perde a paciência e diz: - “O amigo me desculpe, mas isto não é conversa de doutor, digo até que é conversa de um burro grosseiro.”. E diz a história que Melanchthon se levantou da mesa e foi para cima do doutor. Lutero que era o brigão violento ficou espantado e teve de separar os dois, espantado pois essa era a reação que Lutero teria e ele é que teve de separar os dois. A situação ficou tensa e quase chegaram às vias de facto.
Esta imagem é um quadro famoso que está na casa de Melanchthon. Temos Melanchthon e Lutero lado a lado e Cristo crucificado entre eles. É uma imagem bem bonita, os dois como amigos e parceiros, lado a lado, mas é Cristo que está no centro.
Quem vai a Wittenberg na porta principal onde estão gravadas em bronze as 95 teses, encontra-se um tímpano onde estão Lutero e Melanchthon de joelhos e Cristo crucificado entre eles e a cidade de Wittenberg ao fundo. As vestes que o Cristo crucificado tem, estão como que a ondular ao vento mostrando que a mensagem do crucificado se espalha por toda Wittenberg. É bonito porque Lutero tem uma Bíblia e a Bíblia está mais elevada como que consagrada a Cristo, colocada á frente de Cristo. No outro lado, Melanchthon com a confissão de Augsburgo mais baixa do que a Bíblia, mas também colocando aos pés de Cristo a principal confissão da igreja Luterana. Eles foram grandes amigos.
Melanchthon que era essa pessoa mais cordata e de diálogo, também amava os clássicos. Lembrem-se (vou dar enfase a isso nesta palestra) na época humanistas e reformados estavam a caminhar em paralelo e muitas vezes eram as mesmas pessoas. A palavra humanismo nesta época não tinha a conotação negativa que ganhou nos últimos cem anos. O humanista era aquele que queria voltar aos clássicos. O lema dos humanistas era ad fontes: queria voltar aos fundamentos da civilização ocidental, queria saltar pela Idade Média - que também não era vista como a idade das trevas - via-se o valor da Idade Média, mas ele queria ir direto às fontes que fundaram a Idade Média, que era a educação clássica. Então, ad fontes - retorno às fontes - valia para a fé cristã. Então muitas vezes a mesma pessoa que estava a ler Platão, Aristóteles e os originais (ou pelo menos o que chegou desses homens à Renascença, nos originais), também ia para o Novo Testamento ou para a tradução grega do Antigo Testamento para conferir se o que os párocos estavam a dizer era de facto o que o texto dizia nos seus originais.
Um exemplo da importância disto, é Jerónimo que é emulado na capela dos Jerónimos aqui em Lisboa. Ao entrar na capela dos Jerónimos, no final da mesma, encontra-se um alto relevo de bronze, muito bonito, que mostra Jerónimo a traduzir a Bíblia. Ele traduziu os textos originais para o latim e a tradução latina foi a tradução que vigorou no ocidente cristão até à Reforma. Só que era uma tradução com problemas. Por exemplo, ao traduzir a palavra dikaiosis - justo, em grego - ele traduziu essa palavra como “se fazer justo”. E alguém já sugeriu que foi o pior erro gramatical do mundo, por que dá a ideia de que a pessoa se pode fazer justa na medida em que ela recebe graça mediada pelos sacramentos. Enquanto ela permanecer nos sacramentos ela é justa e quando não adere aos sacramentos ela deixa de ser justa, ela cai da graça. E Lutero descobriu que a palavra grega na verdade quer dizer que Deus é que nos declara justos. A pessoa é justa não por um processo, mas por um ato divino que a coloca numa nova posição em Cristo Jesus. Como é que se chegou a esta descoberta? Por esse amor às fontes originais, por voltar às fontes originais.
Melanchthon, ao mesmo tempo que está a ensinar grego e a expor o texto sagrado na universidade de Wittenberg, vai escrever uma gramática grega, mais ou menos em 1519, e uma gramática em latim. Vejam o que ele diz sobre o amor que tinha pelas letras clássicas: “se não aprendermos minuciosamente certas regras de expressão da linguagem não seremos capazes de articular os nossos próprios pensamentos nem entender escritos do passado”.
Não sei se já se sentiram desconfortáveis perto de alguma pessoa mais velha, quando se começa a ter alguma conversa um pouco mais séria sobre questões intelectuais. Isso é um desconforto que eu sinto de vez em quando. Porquê? Porque aqueles mais velhos, educados num outro tipo de paradigma – especialmente calcado nos idiomas clássicos – têm uma abertura de mente maior do que a nossa geração, do que a minha geração e que a atual geração tem. Então é meio desconfortável conversar com eles, parece que nós temos algum tipo de deficit. Porquê? Porque ainda como eco dessa influência de Melanchthon, eles entendiam que o amor e o saber das letras os ajudaria não só a interpretar bem, mas a comunicar com clareza aquilo que se queria dizer.
No meu país, hoje fala-se de analfabetismo funcional e há números assustadores de analfabetismo funcional. Quer dizer que são pessoas que têm diploma, que prosseguiram na escola, mas não conseguem ir além de articular e unir as palavras. Elas não conseguem extrair algo além de palavras do texto, então elas são chamadas de analfabetas funcionais. O que aconteceu? Especialmente nos últimos 50 anos, uma ênfase nas letras simplesmente foi eclipsada no nosso tempo, até mesmo no campo teológico. Está à vista o nosso déficit em hebraico e grego nas nossas faculdades de teologia também. Há uma série de razões por detrás disto, mas este é o ponto na atualidade que contrasta com a visão e o amor de Melanchthon pelos idiomas clássicos.
Ao mesmo tempo que ele está a escrever uma gramática grega e uma gramática latina – o que revela esse amor dele pela linguagem e pela expressão correta da linguagem – ele escreve tratados teológicos também.
Antes de João Calvino, Melanchthon escreve o primeiro tratado teológico protestante em latim. O título é “loci communes” que seria Temas Comuns, que, na verdade, é um grande comentário do evangelho de João onde Melanchthon trata da Trindade e da Encarnação de Jesus Cristo; e do livro de Romanos onde trata do pecado, da graça, da vida no espírito e das últimas coisas. Então Melanchthon oferece à igreja recém reformada o seu primeiro manual de teologia, a sua primeira tentativa de explicar as mais importantes doutrinas numa interpretação evangélica para as pessoas.
Ao mesmo tempo em que ele escreve gramáticas nas línguas clássica e a teologia sistemática, ele também começa a escrever uma série de interpretações do texto bíblico e comentários. Ele não era um grande pregador, mas era um exímio comentarista pelo conhecimento que ele tinha dos idiomas originais. Então ele escreveu comentários de Génesis, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Daniel, todos a partir do idioma hebraico. No Novo testamento ele escreveu comentários dos evangelhos de Mateus e João e das epístolas de Romanos, Gálatas e Colossenses e das epístolas de Pedro, todas comentadas a partir dos idiomas originais. Por outras palavras, este era um homem bem diferenciado, uma pessoa bem diferente da média daquela época.
Mas além de ser um comentarista bíblico, um dogmata e alguém versado nos idiomas originais, ele também era um educador, e grande parte do ministério dele tinha como foco a educação cristã pública. Ele conseguiu unir nele uma série de interesses, mas o nosso foco aqui vai ser o seu ministério educacional. Ele dizia o seguinte acerca da sua perspetiva: “alguns não ensinam absolutamente nada das sagradas escrituras, alguns não ensinam às crianças nada além das sagradas escrituras, ambos os quais não se devem tolerar.” A frase é provocadora, mas o que Melanchthon quer mostrar é que aqueles que não ensinam as escrituras estão a incorrer num erro tão severo quanto aqueles que só querem ensinar as escrituras para os pequeninos. Para Melanchthon as escrituras são como uns óculos que não só nos ajudam a interpretar outros saberes, mas as escrituras devem também nos empurrar a um amor aos outros saberes. Na verdade, Melanchthon tem paixão pelas escrituras, mas tem quase uma devoção por outros saberes. Eu vou tentar abrir um leque daqui a pouco desses múltiplos interesses de Melanchthon para vocês.
Então esta frase sintetiza bem essa união em Melanchthon do amor pela sagrada escritura, que é uma ênfase da reforma. Sola scriptura – somente a escritura – é suficiente para a fé e para as práticas; e também os ideais humanistas de levar a sociedade de volta às fontes fundantes da mesma, que são os escritos clássicos.
Um pouco antes, em 1524, Lutero já tinha escrito um documento estimulando os concelhos locais a se envolverem com a educação (este documento está traduzido para a língua portuguesa do Brasil), estimulando os concelhos de todas as cidades da Alemanha a criarem e manterem escolas. Mas quem vai, de facto, fundar a escola na Alemanha – a escola pública e gratuita e de qualidade da Alemanha – é Phillipp Melanchthon.
Lembram-se que em 1528 Lutero tem a sua grande deceção ao visitar as igrejas da Saxónia e ele fica espantado com dois pontos. Primeiro o baixo nível de adesão às doutrinas básicas das igrejas. As igrejas sabem muito pouco da fé evangélica recém-descoberta. Segundo, as escolas estão fechadas em estado miserável.
Ao mesmo tempo que Lutero está a escrever o breve catecismo, que vai ser lançado no ano seguinte, nesse mesmo ano, espantado com o relatório de Lutero, Melanchthon escreve um documento chamado Os Artigos de Visitação. Estes artigos de visitação tratam de questões ligadas ao pastorado, mas oferecem também um guia para a educação da juventude e é isso que nos interessa mais agora.
O surpreendente – antes de entrar nos pontos que Melanchthon apontou para aquela geração para recuperar uma educação cristã clássica abrangente – o ponto mais surpreendente para nós é que estes artigos de visitação de 1528 se tornaram lei nos territórios protestantes. Foi tamanho o impacto que estes artigos criaram na Saxónia, que eles se tornaram lei e eles refletem este aspeto de Melanchthon como reformador, mas sobretudo como educador público – um educador cristão público.
O que ele oferece naquela altura para as igrejas se reformarem e reformarem as escolas: estes artigos de visitação. Ele vai além de Lutero. Lutero pressuponha o trivium como a estrutura para a catequese, então a ideia de Lutero, mais modesta, é que um adolescente ou um jovem educado no catecismo, ele internalizaria os elementos do trivium, gramática, lógica e retórica.
Melanchthon vai mais além. Ele aceitou a divisão clássica de saberes da Idade Média, ele não queria romper essa tradição clássica e a divisão que vem do mundo medieval, mas ele operou um aperfeiçoamento dessa divisão. O que ele fez? Ele dividiu a juventude em três classes principais, e criou currículos abrangentes para essas três classes principais.
A primeira classe seriam crianças. O que deveriam estudar, qual o seu currículo? Muito básico, para os pequeninos: primeiro o alfabeto, o Pai Nosso e o Credo dos apóstolos. Mais uma vez, vou voltar a frisar isto no final, porque Melanchthon e Lutero estão a apelar para que o estado tire a educação da igreja e o estado agora patrocine uma educação maciça para os seus territórios. Mas o que temos que nos lembrar, é que estamos a falar de um estado cristão, de uma sociedade cristã. Nesta época não se pensa em secularismo, então nós temos que fazer as devidas qualificações. Não existe um território neutro. Se você morasse na Saxónia, seria evangélico, era visto como evangélico, teria sido baptizado em pequenino na igreja, já seria contado como um membro da igreja desde pequeno. Então nós estamos a falar de um outro universo muito diferente do nosso, onde vigorava a noção de cristandade. Hoje lutamos para ter espaço num universo secularizado com o estado a querer empurrar-nos para a periferia e dizer que a fé não tem espaço na esfera pública. Mas nós estamos a falar do sec. XVI onde acontecia o contrário e a fé dominava todo o ambiente da época. Então, nesta primeira classe, as crianças seriam alfabetizadas e seria junto com o Pai Nosso e o Credo. Seria básico as crianças memorizarem estes documentos ao mesmo tempo que eram alfabetizadas.
Os adolescentes, segunda classe, (12 aos 17anos) as coisas ficam mais complicadas. Ao nível da adolescência, até ao começo da juventude, as crianças estudariam o Decálogo, o Credo, e o Pai Nosso. Memorizariam os salmos mais fáceis, como o 112, 34, 128, 125 e 133 e também deviam estudar com profundidade Mateus, as epistolas a Timóteo – que naquela época entendiam que eram escritas para um jovem – a I epistola João e os provérbios de Salomão que seriam um tipo de um livro de ditados para enriquecer a vida e guiar a vida para a vida ser sábia. Mas notem, tudo isto era estudado juntamente com: Física, Lógica, Música, Moral, História e, acima de tudo, Latim. A ideia era que os jovens se esmerassem no latim, fossem um “Ás” no latim para que pudessem, mais adiante, entrar na universidade. Era um pré-requisito, o domínio do latim, para entrar no universo universitário. Esse era o ambiente de estudo de um adolescente na Renascença, na época da Reforma.
Um ponto importante. Na perspetiva de Melanchthon, como em algumas escolas de tradição mais fundamentalista como, por exemplo, nos colégios batistas do Brasil, a Bíblia não era para ser estudada lado a lado com as disciplinas, como se o estudo dos clássicos, de Música, de Lógica, de Física, de História, etc. fossem estudados desconectados da Bíblia. A ideia é que o estudo do Credo, do Pai Nosso, do Decálogo, de textos bíblicos, funcionasse, perdoem-me a metáfora, como uns óculos, pelo qual o estudante pudesse interpretar todas as outras disciplinas que vinham do mundo clássico.
Então – permitam-me fazer um desenho mental – nas escolas de tradição mais fundamentalista pensem num círculo dividido em quatro: num lado coloca-se Gramática, História, Matemática e a Bíblia, como se a Bíblia fosse uma disciplina ao lado de outras disciplinas. Na visão de Melanchthon, volta-se ao círculo, também, dividido em quatro e um círculo dentro do círculo. O círculo dentro do círculo é a Bíblia e as outras divisões, são as outras disciplinas: Gramática, Matemática, Literatura, etc. Então a ideia é que o estudante cristão fosse um exímio estudante da Bíblia, exímio estudante das várias disciplinas e saberes, mas todos estes saberes lidos pela ótica da Sagrada Escritura, interpretados pela ótica da Sagrada Escritura. Isso não quer dizer, por exemplo, que se citava a Bíblia em aulas de Física, Lógica e Música, por exemplo, mas que estas disciplinas seriam sempre interpretadas à ideia e noção de que há um Deus criador; de que há um Deus que se comunica e por isso temos que amar a linguagem; há um Deus que pensa e que é lógico e por isso temos que amar a matemática; há um Deus, que é o Deus da providência e que sustenta a história e por isso temos que amar a historia e assim sucessivamente.
Um ponto interessante. Melanchthon escreveu livros de quase todas estas disciplinas, menos de música. Ele não era talentoso com música, mas ele amava música e entendia que era uma disciplina obrigatória neste segundo nível. Os alunos precisavam apender música, aprender a cantar, a compor, a tocar, etc.
Um ponto muito importante, e esta ênfase vai entrar depois nas escolas protestantes e escolas puritanas de formação de obreiros, é que os adolescentes deveriam ser levados a amar os clássicos. Então eram obrigados à leitura de Terêncio, de Virgílio, de Ovídio e de Cícero. Daqui a pouco vou falar um pouco sobre isto.
Já nessa fase aos adolescentes era dado e incutido esse amor aos grandes clássicos fundadores da civilização ocidental. Lembrem-se: eles são reformadores, Melanchthon era um reformador, Wittenberg é reformada, isto é, está sendo levada de volta a um padrão bíblico. Mas, por outro lado, eles também são humanistas, no sentido em que eles amam a civilização clássica, eles amam aquilo que fundou o ocidente. Eles querem que estes jovens também valorizem aqueles elementos de beleza e de verdade que há no mundo clássico e que fundaram o ocidente. A minha geração foi privada disso e agora, depois dos 35/40 anos, eu vejo como a minha geração perdeu ao ser privada dos clássicos. Não falo só da leitura, por exemplo, de D. Quixote ou dos Lusíadas, eu estou a falar da leitura dos clássicos fundantes do ocidente, Platão, de Aristóteles, de Ovídeo, dos grandes sonhadores latinos que são moralistas. Leiam “A vida dos 12 Césares”, vá além das críticas que são feitas por Suetónio aos “12 Césares”. A crítica é moralista, aqueles que têm autoridade sobre nós têm que ter um padrão de vida mais elevado. Porque Suetónio não trata de pecados e vícios cometidos por Vespasiano e Tito? Há uma comparação e crítica ideológica que é feita, subtil, mas a critica está presente. E a minha geração foi privada do prazer de amar os clássicos por razões que de momento não vêm ao caso.
A terceira classe, jovens, o equivalente à faculdade. O quadrivium, que seria o nível mais avançado depois do trivium, enfatizava a Aritmética, Geometria, Astronomia e Música. Agora Melanchthon baralha tudo isso. O quadrivium agora é dividido entre a segunda classe e a terceira classe. A primeira classe: trivium. A segunda e terceira classe: o quadrivium. Mas misturado agora com uma amplitude de interesses que é espantosa para nós. Nesse terceiro nível, os jovens de 17 anos e adiante, deviam estudar Latim, Gramática, Dialética, Retórica, Filosofia, Matemática, Física e Ética. Vejam a amplitude de saberes que são oferecidos na faculdade. O que temos que nos lembrar é que nos Artigos de Visitação há um apelo para que o estado patrocine isto. O estado cristão. É tarefa do nobre, membro de igreja, cristão, promover esse tipo de educação pública abrangente por um pano de fundo ou um ordenamento ou um pressuposto cristão.
Aqueles que querem se dedicar á teologia, não basta conhecerem bem Agostinho, Anselmo e Aquino eles têm que ser exímios no grego e no hebraico e é outro ponto humilhante para a minha geração e para mim. Costumo brincar e dizer que os meus santos padroeiros são Agostinho de Hipona e Martyn Lloyd-Jones que não conheciam o grego e o hebraico. Mas a minha geração, na década de 90, já foi uma geração educada com essa necessidade de que não precisa de estudar os idiomas originais. O foco com a linguagem agora é outro, não é mais um dado de valor para aqueles que se vão esmerar na Sagrada Escritura. Há outras formas de ler a Bíblia como reader-response e existencialismo como um tipo de ferramenta de interpretação bíblica, que nos levam a não precisar mais dos idiomas originais. E esta foi a forma como fui educado no seminário, lamentavelmente.
Mas Melanchthon enfatizou muito o facto de que aqueles que se vão dedicar ao ministério precisam conhecer os idiomas originais da Sagrada Escritura. Se eles vão se esmerar a ensinar a Bíblia eles têm que conhecer os idiomas nos quais a palavra de Deus foi inspirada.
Eu não sou especialista em home schooling, nem nestas questões ligadas ao home schooling, sou só um entusiasta da escola cristã e home schooling. Mas se notarem e conhecerem um pouco mais de home schooling do que eu, o que Melanchthon está a fazer é uma mistura de métodos. Por um lado, há ecos de uma metodologia mais tradicional com a ênfase em livros/textos, que é um ponto importante para a metodologia pedagógica tradicional. Melanchthon escreveu muitos livros/textos que vou mencionar daqui a pouco, ele preparou-os para uso na nova escola, na nova experiência pedagógica. Ele também se serve da metodologia clássica, ele volta ao passado, ao trivium e quadrivium. Mas vai além destas ferramentas clássicas e adapta-as e mistura-as com outras formas de saber. Mas também há uma enfase na literatura como uma ferramenta de aprendizagem, uma ênfase na leitura dos textos clássicos como ferramenta de aprendizagem. Vou também tocar neste ponto.
Para encerrar este resumo básico dos artigos de visitação, Melanchthon diz o seguinte – lembrem-se que ele era o educado, ponderado, calmo e Lutero é que era o violento, “o que rouba a bola e faz falta”, como diz o meu amigo Sayão – ele diz o seguinte: “aqueles que se opusessem aos jovens serem educados deveriam ter as suas línguas cortadas fora”. Só posso imaginar que ele tenha visto os anabatistas, os nossos primos chatos da reforma, os primos dos baptistas que tinham uma visão anti-intelectual de repúdio aos saberes. Talvez seja este o contexto desta frase, mas esta frase marca também a noção de que o cristão que ama a Sagrada Escritura vai amar outros saberes, porque o Deus que é redentor, também é o Deus criador e outros saberes revelam a beleza deste Deus que é o criador de todas as coisas dessa criação multifacetada que vem de Deus.
Para Lutero, no seu esforço catequético, o seu pressuposto, a sua visão de mundo fundante é o trivium. Para Melanchthon, ele tem uma visão mais ampla do que Lutero. A preocupação de Lutero com a catequese e com a recuperação do trivium ou com o trivium como base da catequese é basicamente pastoral. Lutero é pastor. Melanchthon é educador, e cria um argumento para justificar esse interesse amplo, não só pela reforma da igreja, mas pela reforma educacional. Ele entendia que toda a cultura está debaixo da soberania de Cristo. Cristo é o Senhor de toda a cultura. E cultura aqui não é só idioma, história, elementos regionais, mas também toca saberes, toca a arte como a Música. Então Melanchthon entendia que Cristo comanda toda a cultura. Toda a cultura está debaixo do senhorio de Jesus Cristo. Esse é o pressuposto maior do esforço de Melanchthon, no sentido de educar a juventude na mais ampla gama possível de saberes. Ele entendia que essa compreensão de Cristo como Senhor da cultura, impediria os cristãos de viverem vidas grosseiras, enquanto que ao mesmo tempo os impediria de atribuir mais importância à cultura humana do que à fé cristã.
Não sei como se processa este tipo de problema aqui em Portugal, mas no Brasil, as principais academias são dominadas por uma linguagem Gramsciana ou Marxista: toda a perspetiva se dá pela luta de classes. Mas, signo da nova esquerda, a luta de classes já não é entre pobre e rico, mas com as minorias a procurar o seu espaço: gays, mulheres, negros, índios, etc. E, muitas vezes, para minha tristeza, jovens que não foram educados na fé cristã, no paradigma de Lutero, quando entram na universidade têm dois dilemas: ou sacrificam a fé ou vão compartimentalizar a fé. No primeiro modelo, eles não têm respostas para os problemas expostos na sala de aula. Eles vão entender que a fé que receberam na igreja é falsa, ou uma fé lendária – piedosa, mas lendária – ou uma fraude; eles vão abandonar a fé cristã quase com um suspiro de alívio. Por outro lado, outros vão querer continuar fiéis à fé. Eles não têm resposta para contrapor aos argumentos da academia, então eles vão fazer o seguinte: “aqui eu sou psicólogo, aqui eu sou cristão; aqui eu sou historiador, aqui eu sou cristão”. A fé não toca o que eles fazem no mundo secular. Eles vivem um tipo de esquizofrenia, então algumas vezes o crente até se espanta. Por exemplo: vou ver a aula deste irmão que é historiador. Como é que consegue relacionar a fé dele com o que ele está a colocar na sala de aula? Ou vai procurar o aconselhamento de alguém formado em psicologia e se espanta porque essa pessoa não consegue relacionar a fé dela com o que está a colocar no gabinete.
O que Melanchthon nos oferece é um outro paradigma, um paradigma de abertura aos saberes – já que Deus é o criador de tudo, e por meio de Cristo ele é o Senhor de todos os saberes – mas, por outro lado, é uma abertura crítica a partir da fé cristã. Mais uma vez a fé cristã é como uns óculos, ou o pressuposto ou o paradigma pelo qual todos os saberes são julgados e analisados. E é isso que vai impedir, como Melanchthon diz, uma vida grosseira, anti-intelectual, ou um amor exagerado aos outros saberes contra a Sagrada Escritura, ou desvalorizando a própria Sagrada Escritura.
Um ponto importante que ilustra a questão, é a relação de Melanchthon com as letras. Ele vai enfatizar que o estudo dos idiomas clássicos e também dos outros saberes, precisam de estar subordinados à fé cristã e à escritura. Mais uma vez: porquê amar os idiomas? Porque Deus fala e Deus se comunica: as palavras de abertura da Bíblia são “Deus disse” e tudo se fez. Se Deus fala e se comunica, nós temos que amar os saberes, amar os idiomas. Vejam o que ele fala (é um parágrafo um pouco mais longo, mas elucida-nos a questão): “Aplico-me a uma coisa, a defesa das letras. Convém que com o nosso exemplo se inflame a mocidade de admiração pelas letras, e que as ame por amor delas, e não pelo proveito que delas possa tirar”. A perceção é bonita. Você ama o bom português, não por que quer uma classificação profissional, mas por que quer aprender, quer se comunicar pela beleza do idioma.
“A ruína das letras traz consigo a desolação de tudo o que é bom: a religião, os costumes, coisas divinas e coisas humanas. Quanto melhor é um homem, tanto maior é o ardor que tem por salvar as letras; porquanto sabe que das pestes a mais perniciosa é a ignorância. Uma escuridão terrível cairá em nossa sociedade, se o estudo das ciências for negligenciado”. E não é o que acontece no nosso meio? Toda a gente tem uma opinião, mas na hora de articular essa opinião falta fundamento e há a dificuldade de comunicar exatamente o que essa pessoa quer dizer. No final só se tem opinião. Tudo é reduzido a opinião. Porquê? Porque o estudo das letras foi erodido, e com essa erosão perdemos a capacidade de interpretar aquilo que nos vem do passado e perdemos a capacidade de comunicar com precisão e de forma fundamentada aquilo que nós estamos a pesquisar e estudar. Por isso alguém já brinco: têm-se teses de doutoramento sobre o “se”, sobre o “if”. Tudo se resume a partículas, mais nada. No máximo sentenças, não se consegue pensar além disso.
Então, de um lado, Melanchthon amava o estudo das letras, valorizava o estudo das letras, mas sempre subordinado ao amor às Escrituras. A Escrituras como uma lente pelo qual todos os saberes, inclusive os amores aos idiomas clássicos são interpretados.
Indo além, ele diz que as artes liberais e a educação clássica são um meio e não um fim em si mesmo. Elas são um meio para que uma pessoa tenha uma vida virtuosa, espelhando os altos ideais éticos e religiosos. Por isso o amor aos clássicos. Isto é muito interessante. Quem se lembra do filme “El Cid” com Charlton Heston e Sophia Loren? Querem falar de masculinidade de verdade para os homens da igreja? Façam uma sessão com este filme. Aí falam do que é masculinidade com os homens da sua igreja. Sem moralismo, sem regrinhas, sem tentar “pintar” os homens como se fossem pequenos americanos. Aí ensinam o que é moralidade e o que é virtude masculina de facto para os homens da sua comunidade.
O que é que eu estou a querer colocar aqui para vocês? Esse amor pelo antigo em Melanchthon e dos outros reformadores, Calvino era amicíssimo de Melanchthon, eles discordavam de pontos importantes da teologia como a doutrina da eleição, mas eles morreram amigos, terminaram as suas vidas como grandes amigos, eles compartilhavam esse mesmo amor pelos clássicos. Mas mais uma vez, esse amor pelos clássicos em Melanchthon não é um fim em si mesmo. As pessoas são instadas a ler desde pequenas os grandes clássicos da civilização – como Camões com os Lusíadas – como um meio para um fim: vida virtuosa, um padrão elevado de conduta de vida. Mesmo que a pessoa externamente fosse cristã, mas internamente não fosse cristã – o que é um dilema do luteranismo, a questão da regeneração interna – ainda que fosse um cristão nominal, lendo e estudando a Sagrada Escritura em sala de aula, nas escolas cristãs e numa sociedade cristã e amando os clássicos nesse ambiente, ele seria enquadrado, por assim dizer, a ter uma vida virtuosa, a ter uma vida pautada por grandes ideais.
No caso do famoso filme “El Cid”, a causa é maior que ele mesmo, e mesmo morto ele é o campeão. Vale muito a pena assistir, é um filme maravilhoso, é um dos grandes filmes de Hollywood, vale a pena prestar atenção a eles.
Melanchthon entendia, então, que o uso dos clássicos era o melhor meio de educar a juventude, tanto pela beleza da forma dos clássicos, como pelo seu conteúdo ético. Então, para aqueles que conhecem home schooling um dos métodos é a enfase na educação por meio da leitura da literatura clássica. A criança desde cedo começa a ler os contos gregos antigos, e lembrem-se, são todos morais, toda a ênfase deles é moral. Eu vou daqui a pouco destacar o que está por detrás disso, qual o entendimento bíblico e teológico que está por trás dessa enfase nos clássicos. Então, a ideia era desde cedo cativar a juventude com uma vida virtuosa e elevada, mas com amor pela beleza e pela ética.
Qual é o pano de fundo dessa ênfase das artes liberais? Qual o pano de fundo teológico da ênfase nos clássicos? Melanchthon dava muito valor à filosofia, mais valor do que Lutero. Para Lutero a filosofia sem Deus era “?fraupuda?” (min47), era prostituta de satanás, estes eram os vocábulos que ele usava para caracterizar a filosofia. Melanchthon tinha uma visão mais elevada da filosofia. Ele entendia que a filosofia tinha relação com a lei e o evangelho. Todo o conteúdo da mensagem de Lutero era resumido nesses dois vocábulos. Deus deu a lei no Sinai e essa lei tem validade permanente até hoje. Só que a lei nunca é dada como caminho de salvação. A lei é dada para nos humilhar, para revelar o nosso pecado e para nos mostrar que nós não somos nada perante Deus. Tudo o que nós precisamos para ter uma relação correta com Deus é dado na cruz, e no evangelho e na graça. Mas para Melanchthon, a filosofia reflete os valores da lei, a melhor filosofia reflete os valores da lei. A filosofia é dada pela luz à criação. Ela mata, mas por outro lado ela contém elementos do conhecimento natural de Deus, que ainda que obscurecidos pelo pecado estão presentes em todo o ser humano.
Paulo, em Romanos 1:18-32, não quer provar que Deus existe. Ele já parte do pressuposto que Deus existe. A sua revelação na criação é clara, mas nós, por causa do nosso pecado obscurecemos essa revelação. Então, o ponto para Melanchthon é que o cristão pode ter essa abertura aos clássicos, essa abertura a visões de pensamento da antiguidade clássica, porque o melhor delas reflete essa lei natural dada na criação pelo próprio Deus. Naquilo que Platão e Aristóteles, Ovídio, Séneca, Tito Lívio e outros estão concordes com a fé cristã, porque Deus preservou esses elementos neles e eles são nossos. Usando uma expressão que vem de Agostinho, na sua grande obra “Doutrina Cristã” – que na verdade é uma obra de interpretação de texto e não de apresentação do que é essencial à fé – ele vai dizer o seguinte: “a verdade é verdade de Deus onde quer que a encontremos e uma vez que a encontramos, nós cristãos agimos como os Israelitas saindo do Egipto: nós trazemos connosco o melhor do Egipto”. Então para Melanchthon, fazendo eco essa posição de Agostinho, a lei moral também se reflete no melhor da filosofia clássica, no melhor da educação clássica. Elementos como a verdade, beleza, o culto à divindade, que estão presentes na filosofia clássica e nos clássicos elas são derivadas da lei dada por Deus, da revelação geral dada por Deus. Só que elas não salvam, porque nós estamos em pecado, nós vemos somente os borrões. Nós precisamos do evangelho para ser salvos.
Então, ecoando Gálatas 3, Melanchthon entenderia que a lei é um pedagogo divinamente ordenado para nos levar a Cristo. O aio, nas traduções mais antigas, era um escravo geralmente mais envelhecido que andava com um tipo de bastão e ele escoltava o filho do seu dono da escola ida e volta e ele usava aquele bastão para tocar os amiguinhos que queriam tirar o rapaz do bom caminho e leva-lo para brincar, ele também usava aquele bastão para tocar o menino para a escola se ele quisesse fugir para brincar, e ele usava aquele bastão para educar. Os mais velhos lembram-se das palmatórias nas escolas antigas, é mais ou menos por aí.
Então a lei e também os clássicos, que refletem esses valores da lei e refletem a luz de Deus na criação, são esse pedagogo ordenado por Deus para nos levar a Cristo. No caso a Filosofia, também valorizada a filosofia grega clássica como um intérprete, é sujeita à revelação, e a revelação seria o principal padrão para julgar a filosofia, para julgar os saberes clássicos que refletiriam os principais valores da lei de Deus do passado.
Portanto, Melanchthon elabora um tipo de filosofia natural, baseado em Aristóteles, Galeno e Platão, mas também vai incorporar pensadores contemporâneos como Copérnico e Versailles, e vai elaborar um tipo de doutrina da providencia que é muito próxima da ideia do design inteligente que tem sido defendida por alguns cientistas cristãos hoje. A ideia é que a criação reflete valores de um Deus que cria e sustenta. Não dá para entender a criação do mundo como fruto de um mero acaso, algum tipo de explosão acontecida há milhões de anos atrás e que de repente nós surgirmos aqui com um nariz, dois olhos, dois ouvidos. Como é que nós surgimos aqui? Será que nós somos obra do acaso? Simplesmente um lance de lançar dados para cima? Melanchthon usando o melhor da filosofia do passado e da época dele, e das ciências naturais, monta um argumento mostrando que a boa filosofia natural, na verdade, é uma ilustração do design providencial de Deus no mundo físico. Por isso o amplo interesse dele em astrologia, anatomia, botânica e matemática. Na verdade, ao mesmo tempo que Melanchthon estava a ensinar o Novo e o Antigo Testamento na universidade em Wittenberg, fundou um grupo chamado o “ciclo de Melanchthon” reunindo em Wittenberg um grupo de homens todos interessado em filosofia natural e em ciência natural desenvolvendo esse aspeto do saber a partir dessa cidade de Wittenberg.
Então, esse é, mais ou menos, o roteiro de Melanchthon para a educação da juventude na Alemanha, na reforma protestante do sec. XVI. Só que Melanchthon foi além. Melanchthon é considerado o fundador do ensino público na Alemanha e provavelmente na Europa. O que Melanchthon almejava é que esse ensino abrangente tornasse os cristãos ativos no mundo. Todos os cristãos. Os primeiros passos foram dados por Lutero na medida que há uma catequese contínua na igreja. Todo o ano a igreja voltava ao catecismo, todo o ano ela voltaria aos aspetos mais básicos da fé cristã pela ótica do trivium - gramática, lógica e retórica. Agora, tendo essa base conceitual, estaria apto a glorificar a Deus da forma mais ampla possível, na criação, no mundo. O que Melanchthon almejava é que esse cristão ativo no mundo, seja nas forças armadas, nas novas escolas, seja a aconselhar os nobres na área do direito, seja em casa, seja na igreja, ele conseguisse dissipar as trevas de uma fé corrompida, supersticiosa e ignorante.
Lembram-se que na idade média havia educação, desde que Carlos Magno fundou escolas na europa, mas essas escolas eram reservadas apenas à nobreza. Criou-se a noção de que o esforço intelectual é superior ao esforço braçal. Em alguns rincões na europa, inclusive, aqueles que trabalhavam no campo não podiam ascender ao clero porque eles vinham de um universo de trabalho inferior àqueles que foram escolhidos para o trabalho intelectual. E só podiam fazer faculdades como direito e medicina aqueles que vinham da nobreza. Os melhores filhos eram destinados a esta carreira. Os filhos que sobravam da nobreza eram enviados para as faculdades de teologia, isto às vésperas da Reforma. Agora o que Melanchthon quer com estre currículo abrangente e revolucionário é oferecer à mais ampla gama possível de jovens de Wittenberg, acesso a esta educação. O que ele faz então? Ele vai, juntamente com os nobres, tirar o ensino do controle da igreja e colocar debaixo do controle do estado.
Mas temos que entender aqui um ponto. Eu ouvi ontem muito boas palavras do Tim Vince sobre como o estado na europa tem tentado controlar a educação. E uma iniciativa como a da escola cristã aqui, tem que ser vista com elogios e vista de uma forma muito positiva porque é um ato de rebelião nosso lutarmos contra um tipo de educação enviesada, ideologizada e totalmente secularizada dada pelo estado. Lá no Brasil a situação tem chegado a um limite de tensão muito forte suscitando ira inclusive de católicos e de pessoas que nem são cristãs contra o tipo de ensino que é dado e patrocinado pelo estado. Então precisam de ter em mente que eu estou a falar aqui de um outro mundo, onde o estado é cristão. Homens como Frederico Sábio, João Constante, João Frederico que eram os nobres da época de Lutero, eram gigantes na fé cristã. Os nossos políticos não chegam nem aos pés deles. O que eles entendiam é que a sociedade toda era cristã: o bairro, o território, tudo era cristão. A igreja permeava toda a sociedade e estes nobres tinham o dever de zelar pela fé cristã e inculcar a fé cristã em todo o território. Então, o que é que Melanchthon faz? Ele arregimenta os nobres para que eles ajudem. Lembrem-se: igreja e escola estavam juntas e seis ou sete anos depois de Worms as igrejas estão a padecer por falta de ensino bíblico e as escolas abandonadas. Então Melanchthon arregimenta os príncipes eleitores do seu território, a Saxónia, para que eles reformem as escolas. Eles devem reformar a igreja, devem lutar pela liberdade de culto da igreja. Esses príncipes lutaram muito indo até à Dieta de Speyer para protestar contra a ingerência do estado que queria proibir o culto evangélico nos seus próprios territórios, mas agora Melanchthon os arregimenta para reformar as escolas e reformá-las nesse padrão que ele está a oferecer.
Então Melanchthon é o fundador do ensino público gratuito. O estado deveria, não só tirar do controle da igreja a educação e trazer agora para si essa educação, mas essa educação pública gratuita deve ser de qualidade segundo o padrão que o próprio Melanchthon estabeleceu e deve estar aberta a toda a população. Por isso é que Lutero – vamos voltar à primeira palestra – está a incutir o trivium ao mesmo tempo que incute o catecismo. Ele preservou cultos ou missas em latim na cidade de Wittenberg para que a juventude pudesse, desde cedo, ser educada na linguagem da universidade e qualquer jovem, não importa a condição social dele, ser filho de camponês ou da baixa nobreza, qualquer jovem pudesse entrar também na universidade.
O que acontece? Melanchthon gera uma segunda reforma. Ele não apenas participa da reforma doutrinal, levando a igreja da Alemanha a tentar chegar a um padrão bíblico de fé, mas ele opera também uma reforma pedagógica de longo alcance. Já na época dele, cinquenta e seis cidades da Alemanha procuraram a sua ajuda na reforma das suas escolas. Por isso é que ele é chamado o mestre da Alemanha. Oito universidades pediram a ajuda dele para reformarem todo o currículo. Ele fundou, com outros colegas, quatro outras universidades: Greifswald, Königsberg, Jena e Marburg. Universidades que existem até hoje. Conseguem imaginar isso? Um homem a fazer isto tudo? Casado, com 4 filhos se não me falha a memoria, um gigante da fé. Interessado não só na reforma doutrinal da igreja, não só em levar a igreja de volta ao evangelho puro da graça de Deus em Cristo Jesus, mas também agora interessado em reformar a educação, pois que ao reformar a educação, ele reforma toda a sociedade. Ele consegue levar a sociedade ao um padrão elevado de cristianismo. Ele escreveu livros didáticos para equipar essas escolas, como eu disse, ele não era musicista, talvez seja uma das pouquíssimas áreas em que Melanchthon não escreveu sobre, mas ele escreveu gramáticas (eu mencionei duas de grego e hebraico), ele escreveu livros didáticos, manuais de lógica, de ética, manuais de política, direito, poesia e alguns deles em uso até ao séc. XVIII e uso até em territórios católicos da Alemanha.
Na verdade, em 1997, celebrou-se os 500 anos de Melanchthon, tornou-se a data de Melanchthon na Alemanha, começou a ser chamado de preceptor da Alemanha, o mestre da Alemanha. Só que ao se estudar o impacto de Melanchthon, descobriu-se que o impacto dele ía à Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia. O impacto dele foi muito maior do que os territórios da Alemanha e muito maior do que os próprios territórios luteranos, indo o seu impacto até mesmo entre os territórios católicos.
Para encerrar, alguns pontos ainda da vida dele e depois terminamos com uma oração.
Quando Melanchthon entrou na universidade de Wittenberg com vinte e poucos anos de idade, em 1518, a universidade tinha 120 alunos. Dois anos mais tarde as aulas dele reuniam quase 600 alunos, enquanto que as de Lutero tinham 400 alunos. Interessante, ele acabou por se tornar um professor mais popular do que Lutero. Por isso é que eu mencionei no começo da palestra que na medida em que se começou a diminuir uma ênfase nas doutrinas que Lutero redescobriu, que são as doutrinas que caracterizam uma comunidade como evangélica, ficou a herança educacional de Melanchthon. Por isso ele foi valorizado, até mais do que o próprio Lutero.
Os seus ensinos eram profundos, claros e isso responde pela grande audiência que vinha até ele e responde ao facto de que aquela universidade de Wittenberg, fundada por Frederico Sábio, pouco antes do começo da reforma, ficava num lugar de pouca fama na europa, e no séc. XVII já era uma universidade conhecida por toda a europa. Aliás, Pedro de Gois, que teve uma morte misteriosa, um tipo de cripto reformado, foi a Wittenberg, conheceu o próprio Melanchthon, trocou correspondência com Melanchthon inclusive e a inquisição entendeu que isso era razão para retirá-lo de Coimbra, onde dava aulas e foi encontrado morto de forma misteriosa, e há a ideia de que ele seria alguém ligado à reforma de Lutero e Melanchthon. Era muito próximo e amigo de Melanchthon.
Melanchthon não era livre de falhas. O seu jeito cordato gerou muitos problemas para ele, sobretudo depois da morte de Lutero, que o moderava teologicamente. Ele acabou abrandando a visão que Lutero e Calvino tinham de eleição e predestinação. Abraçou uma visão de salvação de cooperação entre palavra, espírito e vontade. Mas isso nunca impediu que Calvino continuasse amigo de Melanchthon até ao final da vida de ambos. A controvérsia mais séria de Melanchthon foi quanto à ceia do senhor. Ele assumiu uma posição calviniana da ceia, diferente da posição luterana. A posição luterana típica é que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes nos elementos de uma forma mística, de certa forma está-se a alimentar dos elementos, ainda que os elementos não se transformem como no catolicismo, mas ele abraçou uma visão mais calviniana e isso gerou muita dor de cabeça para ele. Um ponto importante é que ele nunca tratou mal os seus detratores. Ele foi tratado com muita dureza, muita crueldade, mas o espírito calmo e gentil dele se refletia até na forma de responder àqueles que o atacavam.
Morreu em 19 de abril de 1560 e foi enterrado em Wittenberg. Aqueles que visitam a igreja do castelo, vão ver que as tumbas de Lutero e Calvino estão em paralelo, uma do lado da nave, a outra do outro lado da nave e no meio mais adiante a tumba de Frederico Sábio, que protegeu ambos, mesmo que nunca se tenha tornado evangélico.
Comentando João 15 e com isto encerro, Melanchthon resumiu o que era a fé dele e o que o motivava. Ele diz o seguinte: “é preciso que nós sejamos absorvidos por Cristo, de sorte que nós não laboremos mais, mas que Cristo viva em nós, como a natureza divina foi incorporada ao homem Jesus Cristo, assim convém que o homem seja incorporado a Jesus Cristo pela fé.” Essa era a motivação dele, porque ele se via incorporado a Jesus Cristo ele podia descansar. Ele queria reformar a igreja, queria reformar o sistema educacional da Alemanha da sua época, e ambiciosamente entendia que uma reforma educacional, reformaria também a sociedade. E o impacto dele se vê até ao dia de hoje quando é celebrado como o mestre da Alemanha, o fundador do sistema educacional alemão e mais além.